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Após quinze minutes correndo, eu já nem pensava mais em nada.
Meus pés continuavam a queimar a floresta, fazendo um pequeno trilho atrás de mim. Para a minha sorte, a noite deixava meu rastro ainda mais visível.
No entanto, quem poderia me seguir? Após todo esse tempo sem ligar para mim, quem se preocuparia com um garoto de fogo correndo pela floresta?
“Eles são apenas pessoas metálicas, ocas por dentro”, pensava comigo mesmo. “Não sabem o significado de um sentimento.”
Finalmente parei de correr, depois de olhar para trás e ver que não havia ninguém por perto, aparentemente. Sentei-me no chão, olhando para o céu. Agora que estava sozinho de novo, voltei a refletir. Porquê achei que algum dia aquilo daria certo? Eles nunca teriam me aceitado. Sempre que algo dava errado, era culpa do “garoto incendiário”. “Não olhe para ele, não toque nele!” diziam os pais das crianças ao passarem por mim. Somente uma pessoa havia me protegido, mas isso também fora uma mentira. No fim das contas, aquela garota era só mais um metal enferrujado, como todas as outras pessoas. Agora, eu não tinha mais nenhum vínculo com aquele mundo, apenas um coração ferido.
Observando as chamas atrás de mim, vi que elas já se apagavam, sem se espalhar pela vegetação rasteira.
Ótimo, pelo menos eu não vou queimar a floresta enquanto estiver aqui.
Decidi me levantar e continuar a caminhar. Ficar parado não resolveria minha vida em nada, e talvez eu achasse algum lugar para dormir fora dos arredores da cidade.
Pelo menos, a lua estava bonita. Ela era minha única companheira naquele momento.
Até eu me encontrar com ela.
Seguindo mais alguns metros, achei uma trilha que parecia ter sido usada havia pouco tempo, pois o solo estava úmido. O cheiro de terra molhada estava impregnado no ar, mas eu continuei a andar. Ao pisar no chão, fiapos de fumaça saiam dos meus pés, ao entrarem em contato com a água.
Finalmente, eu tinha achado a pessoa por trás daquele trilho.
Mas não era uma boa hora para eu fazer contato com alguém. A pessoa havia me visto, mas eu tentei recuar. Ela passou a correr atrás de mim, e o fogo ficou mais forte. Pensei ter escutado algo, mas o som dos meus passos abafou o que quer que tenha sido. Eu já estava começando a ficar com raiva. E se fosse mais um daqueles guardas metálicos que sempre me perseguiam?
A essa altura, eu já não estava mais raciocinando. Com um movimento violento e rápido, me virei e lancei uma bola de fogo, tentando acertar quem me perseguia. Mas a única coisa que escutei foi um som de vaporização, como se tivessem repelido meu projétil com água. Quando cheguei a uma clareira, esperei parado pela pessoa que me seguia, empunhando uma espada flamejante. Infelizmente, meu palpite estava correto. À minha frente, um forasteiro com roupas esfarrapadas me observava atentamente. Usava um capuz que cobria praticamente todo seu rosto, mas seus braços estavam descobertos, e pude ver que eram feitos de água. Eu não conseguia identificar seu sexo naquela escuridão, mesmo com a minha chama, mas pouco me importava. Ninguém mais estava do meu lado. Todos eram meus inimigos.
Sem pensar, avancei.
Desferi múltiplos cortes com a espada, queimando árvores e folhagens, mas sem acertar o forasteiro. Ele era rápido, mas não parecia ser agressivo. Mesmo assim, parti para o ataque novamente, dessa vez lançando uma coluna de chamas pela boca. Antes que pudesse ser atingido, porém, ele criou uma espécie de gêiser abaixo de si, impelindo-se para cima e caindo logo atrás de mim. Agora, ele empunhava uma pequena adaga que parecia ser feita de gelo.
Finalmente teríamos alguma diversão.
- Então – disse para o forasteiro, sorrindo – vamos começar?
O forasteiro não disse nada, apenas avançou, desferindo um corte lateral com a adaga, que não me atingiu por pouco. O duelo se seguiu como uma dança, com ambas as espadas atacando e defendendo, retinindo a cada golpe.
Ao passo que minha espada queimava as coisas à sua volta, a adaga do forasteiro deixava o ar mais pesado e rarefeito, como se eu estivesse em meio a uma nevasca. Em poucos minutos, não consegui resistir. Se não recuasse logo, todo aquele frio me mataria.
Tornei a correr, subindo para as árvores e tentando acertar o forasteiro com mais bolas de fogo.
No entanto, ao pular para um galho próximo, o forasteiro pisou em falso e caiu, e eu subitamente parei no mesmo instante. Eu estava confuso, com raiva e pena ao mesmo tempo. Por que eu não acabava com ele agora mesmo? Por que eu havia lutado com ele? E se aquela pessoa não fosse meu inimigo?
Algo me incomodava. Aquilo não estava certo. De alguma forma, eu sabia que tinha de ajudar aquela pessoa, ao mesmo passo que sabia o quão perigoso minha ideia seria, se eu estivesse errado.
Deixei de lado todos os pensamentos e desci de onde estava, indo de encontro ao forasteiro.
Ao caminhar para perto dele, imaginei que seria impossível ajudá-lo, pois eu queimaria suas roupas se o tocasse, e talvez eu morreria se encostasse nele.
Eu quase caí para trás quando ouvi uma voz feminina.
- Ai... Minhas costas.
Recuei alguns metros, com medo. Na verdade, o forasteiro era uma garota.
Ela se levantou cautelosamente, e seu capuz caiu para trás, revelando seu rosto.
Era uma garota feita de água, com feições suaves e delicadas.
Eu estava atônito. Aquela garota era linda.
Tentei falar algo, mas, quando ela me viu, recuou.
- Ah! – exclamou ela, com medo.
- Me desculpe! – disse rapidamente, tentando explicar a situação, mas estava muito nervoso, e as palavras não saiam como eu desejava – Eu achei que você... Então eu...
A garota recuou mais alguns metros.
- Por favor, não vá embora! – estendi a mão, em um gesto desesperado.
No entanto, meu movimento criou uma chama, que a fez recuar mais ainda.
A garota estendeu as mãos para frente, como um sinal de paz.
- Sem lutas! Não quero machucar você!
No fim das contas, ela não era mesmo um inimigo. Aquilo estava me deixando maluco. Depois de tanto tempo sendo enganado e fugindo de pessoas, eu encontrara alguém que era diferente, mas eu não tinha como chegar perto dela. Eu era muito desajeitado, qualquer movimento poderia ser um erro, e então eu nunca mais iria vê-la.
- Eu sou um desastre – disse, olhando para o chão.
- Por quê?
- Não há lugar para mim nesse mundo, eu não fui feito para conviver com as pessoas.
- Mas... – respondeu ela, chegando um pouco mais perto – O que aconteceu?
Ergui a cabeça, olhando em seus olhos. Ela parecia querer me ajudar, mas eu ainda não entendia o porquê.
- Eu vivia em uma cidade onde eu era a única pessoa diferente.
- Pois é, eu mesma nunca vi ninguém que fosse feito de fogo. Mas porquê ser diferente é tão ruim? Olha, eu também já vivi em uma cidade parecida com essa.
- E o quê você fez?
- Simples, eu fugi. Aquelas pessoas não me mereciam, não sabiam conviver com um ser diferente de elas mesmas.
- É exatamente o que aconteceu comigo... – murmurei.
- Veja só. Não é nossa culpa de sermos diferentes. Nós somos especiais, e temos que viver assim. Temos que viver da nossa própria maneira, e os outros têm que lidar com isso.
Fiquei em silêncio, pensando. Talvez, ela tenha tido o mesmo problema que eu. A única diferença entre nós é que ela havia aprendido a viver daquele jeito.
Eu não poderia correr para sempre. Não iria esconder minha mágoa de tudo e de todos. Eu estava disposto a seguir um novo caminho.
- Qual o seu nome? – perguntei.
- Aqua, e o seu?
- Eu... eu não sei.
- Como assim?
- Não me lembro de ser chamado por algum nome, todas as pessoas naquela cidade tinham medo de mim...
- Ah, entendo...
- Você tem medo de mim? – perguntei, sem pensar.
- Contando que você não me ataque, não – respondeu ela, rindo.
Seu sorriso era lindo, contagiante. Não pude deixar de sorrir também.
- Eu não quero machucar ninguém.
- Eu sei que não. Eu também nunca quis, mas as pessoas não sabem conviver conosco.
O sol já começava a aparecer ao longe, trazendo um pouco de luz à paisagem.
- Então, para onde você vai agora? – perguntei.
- Vou continuar andando, à procura de algum lugar onde haja pessoas de verdade.
- Eu posso... Seguir com você?
Eu poderia ter jurado que Aqua tinha enrubescido.
- Acho que sim...
Caminhei para mais perto dela, cautelosamente. Ao ficar frente a frente com ela, porém, ela pareceu se dar conta de algo.
- Mas eu... – tentou dizer ela – Eu posso te machucar...
- Eu não tenho medo – respondi firmemente.
Meu coração batia forte, eu sabia que algo daria errado, mas mesmo assim, continuei. Estendi a mão para ela.
- Tem certeza? – ela perguntou.
- Sim.
Aqua estendeu sua mão para mim, e eu finalmente a toquei.
Eu não havia sido ferido. Nossas mãos estavam juntas, então eu puxei Aqua para perto de mim e a abracei.
Finalmente, eu havia achado alguém que valia a pena por todo esse esforço.
Quando me afastei de Aqua, ela estava boquiaberta.
- Você... Seu fogo...
- O que?
- Olhe para si mesmo.
Abaixei a cabeça para ver o que tinha acontecido, então entendi tudo. Ao entrar em contato com Aqua, meu fogo havia tomado uma coloração azul, fazendo com que ele não se apagasse.
- Como isso aconteceu?
- Foi você, Aqua – respondi, sorrindo. – Você descobriu meu fogo verdadeiro.
- Como assim? – perguntou ela, surpresa.
- Antes, meu fogo era alimentado por ódio, raiva e outros sentimentos ruins, mas você me fez superar tudo isso.
Peguei seu braço suavemente, trazendo-a para perto de mim mais uma vez.
- Eu te amo, Aqua. Esse é meu combustível, e ele nunca irá se esgotar.
Ao nascer do sol, dois elementos distintos se uniam com um beijo, algo que um dia parecera impossível.
Eien no Sonzai